O desafio do déficit público

O desafio do déficit público

27/07/2021

Fábio Giambiagi é obcecado pelos dados. É com essa obsessão e uma bagagem de quase quatro décadas acompanhando temas fiscais que o autor lançou uma radiografia da política fiscal brasileira no livro “Tudo sobre o déficit público” que é uma boa sugestão de leitura para quem deseja aprender sobre a evolução histórica das contas públicas no Brasil e seus desafios.

No primeiro capítulo (Uma tarefa pendente), Giambiagi apresenta uma breve história da economia brasileira nas últimas décadas. É interessante notar que em várias passagens do livro o paralelo com a Argentina é inevitável dada a origem do autor. E quando esse paralelo é feito, é possível perceber a metade cheia do copo. Nos últimos anos várias mudanças importantes foram feitas que passam pelo controle da inflação, o fim da vulnerabilidade externa e assim por diante. Mas o livro é sobre os desafios: crescimento econômico, elevação do investimento, e a “tarefa pendente”, o equilíbrio fiscal, que é o tema do livro. Vamos discutir, então, o equilíbrio fiscal.

O segundo capítulo apresenta as estatísticas de déficit e dívida ao longo dos anos 1980 até o presente com uma preocupação de explicar como as coisas funcionavam no período da inflação elevada, como isso distorcia os indicadores fiscais (o que fazia com que o termômetro apresentasse um diagnóstico distorcido) e as melhorias institucionais que foram adotadas ao longo desse processo de reorganização das contas públicas. O capítulo flerta o tempo inteiro entre o moderado otimismo de longo prazo com a evolução do país e o pessimismo em relação ao curto prazo. O ponto alto do capítulo é a série histórica de dívida líquida iniciada em 1981. Para um livro que se propõe a apresentar os dados, essa informação é uma relíquia. O gráfico mostra como os ciclos de endividamento e desendividamento são longos e atravessam vários governos.

O terceiro capítulo apresenta o que é talvez a despesa pública mais incompreendida de todas: o gasto com juros. Fabio explica essa despesa e qual a sua lógica de formação tanto do ponto de vista do investidor que compra um título público bem como a separação entre o componente inflacionário da despesa do seu componente real. Como essa despesa tem caído ao longo dos anos, o desafio encontra-se em outro lugar.

O quarto capítulo trata da arrecadação apresentando os principais ciclos de elevação da carga tributária no Brasil com foco no Governo Federal. O livro não trata de reforma tributária, pois não é seu propósito, ainda que dê algumas pinceladas no tema, mas chama atenção para um tema pouco alardeado no atual debate de finanças públicas que é o fato de que uma parte do ajuste fiscal terá que ser feito com aumento de receitas, uma verdade inconveniente, mas devidamente ressaltada. O acompanhamento desses indicadores dá uma ideia do que é possível fazer.

O quinto capítulo inicia o tratamento da grande especialidade do autor que é a despesa pública onde apresenta-se o processo de crescimento das despesas nas últimas três décadas e seus principais componentes. Esse capítulo é o aperitivo do que vem pela frente. O Tesouro Nacional apresenta dados a partir de 1997 ao passo que no livro constam informações estatísticas que começam em 1991, outra relíquia. O esforço de apresentar dados detalhados e com a periodicidade mais longa possível é uma preocupação permanente ao longo do texto.

No sexto capítulo, Giambiagi inicia a força tarefa pelo lado das despesas focando nas despesas com pessoal em que são abordados três temas. O primeiro é chamar atenção para uma visão populista que atribui à despesa com pessoal a responsabilidade pelo desequilíbrio fiscal o que não é verdadeiro. Essa despesa é elevada, mas não é explosiva. O segundo é chamar atenção que o salário dos servidores públicos não pode ser uma variável de ajuste fiscal por tempo indefinido. O terceiro é um fato estilizado que se refere ao ciclo político no comportamento desse item. Desde o Plano Real, cada governo, do seu modo e por razões próprias, faz um forte ajuste nessa despesa, no primeiro mandato do governo, e depois da reeleição há um afrouxamento. Aconteceu no segundo governo FHC, Lula e Dilma/Temer.

No sétimo capítulo trata-se da principal rubrica da despesa: o INSS. Esse talvez seja o capítulo mais aguardado dado o histórico de defesa da reforma da previdência que acompanha a carreira profissional do autor. Como o maior objetivo do livro é apresentar as informações, há um rico detalhamento dos principais fatores que determinam a despesa previdenciária: envelhecimento populacional, regras previdenciárias que se tornaram defasadas, salário mínimo, gênero e situação de domicílio. O capítulo termina com a discussão da última reforma previdenciária. Senti falta da menção às reformas anteriores, não realizada talvez por falta de espaço, por terem sido de menor impacto e porque o interesse maior talvez esteja em estabelecer uma conexão com a agenda presente. Ao leitor interessado nesses temas fica a sugestão de ampliar a leitura para o livro de finanças públicas ou sobre reforma da previdência do mesmo autor.

Na sequência, há uma decisão difícil a ser feita porque as demais despesas são relativamente pequenas e muito heterogêneas para serem tratadas como um bloco uniforme. Assim, o livro separa as demais despesas em três capítulos: (i) demais despesas de custeio e capital (que incluem despesas do FAT, subsídios, BPC, além de outras despesas menores), (ii) demais despesas obrigatórias (que incluem os mínimos constitucionais de saúde, educação e o bolsa família, etc) e, por fim, (iii) as despesas discricionárias que tem sido objeto de preocupação nos últimos anos. Os três capítulos explicam bem seus principais determinantes. Ao longo do texto fica claro que, depois de um período de cortes, é mais difícil produzir ajustes na maior parte dessas rubricas nos próximos anos.

O capítulo 12 trata do teto de gastos. É sabido que o autor foi favorável ao teto na sua formulação e, ao mesmo tempo, defende uma revisão em função da dificuldade de aprovação com as reformas e do entendimento de que algumas despesas não são passíveis de compressão indefinidamente. A dificuldade de ajuste em determinadas rubricas a partir de um determinado ponto é colocada ao longo de todo o livro. Esse capítulo desenvolve o argumento em torno da necessidade de se buscar uma nova configuração para o teto de gastos que mantenha a necessidade de manter o processo de ajuste fiscal. Essa me parece ser a questão principal que traz um pouco da angústia do autor: como concluir esse processo verificando que muito foi feito e que existem limites para sua continuidade. Daí vem o tamanho do desafio.

A questão federativa, de autoria do economista Guilherme Tinoco, é tratada no último capítulo temático. Nesse capítulo, ele conta como o a LRF foi constituída em um ambiente de contas públicas reorganizadas e, por isso, focou na manutenção dessa organização. Com a crise fiscal em 2015, o sistema de cooperação federativa teve que ser reformulado porque o objetivo mais emergencial era buscar meios de reorganização das finanças de Estados, principalmente. A LRF não foi concebida para isso, razão pela qual foi criado o regime de recuperação fiscal, para situações mais extremas, e um outro regime mais simples para os demais estados. Atualmente, o problema federativo mais crônico se concentra em três estados: RJ, MG e RS e os desafios mais estruturantes estão relacionados à gestão da folha de pessoal.

Os demais capítulos tratam da consolidação das informações e do desfecho da discussão. O livro é uma boa referência para quem está sendo iniciado no debate de finanças públicas e combina séries históricas que ajudam a pensar o processo fiscal como um todo e possui uma série de relíquias da época da inflação elevada, mas com foco nas questões mais presentes de política econômica.

Mas antes de mais nada como o autor destaca na introdução, o livro também é uma homenagem a todos os órgãos, pesquisadores, servidores públicos, alguns citados nominalmente, que se dedicaram à árdua tarefa de disseminar informação sobre um tema tão importante. Fica o reconhecimento do Observatório de que Fábio Giambiagi também faz parte do grupo que ele mesmo resolveu homenagear.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.   

    

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