Concentração de renda no topo: novas revelações pelos dados do IRPF (parte 2)
Esta nota técnica complementa a análise anteriormente publicada neste Observatório sobre a concentração de renda no topo da pirâmide social brasileira entre 2017 e 2022, mostrando como cresceram os rendimentos dos mais ricos em cada unidade federada. Os resultados indicam que, além de ter crescido bem acima da média da população, a renda da elite subiu mais nos estados em que, em geral, a economia é dominada pelo agronegócio, chegando a uma alta nominal de 204% (ou 131% em valores reais) no Mato Grosso do Sul (MS) no estrato social constituído pelo 0,01% mais rico (vide tabela 1).
Em média, a renda da elite do 0,01% cresceu nominalmente 96% no período de cinco anos – quase três vezes mais do que a registrada na base da pirâmide (33%).[1] Descontando a inflação (IPCA) de 31,4% entre 2017 e 2022, o aumento real de renda entre os mais ricos chegou a 49%, enquanto entre os mais pobres (e a classe média) foi de apenas 1,5% em média.
Fonte: elaboração própria pelo autor.
Essas evidências, como assinalado na nota técnica anterior (link), indicam que a concentração de renda cresceu significativamente no período analisado, depois de uma década de relativa estabilidade da desigualdade. E não se trata de qualquer aumento de concentração, mas de um aumento significativo, visto que, como ressaltamos, a renda da base da pirâmide (95% na população adulta, na verdade) permaneceu semi-estagnada em termos reais, enquanto a dos mais ricos cresceu a ritmo chinês.
Depois do Mato Grosso do Sul, as maiores taxas médias de expansão na renda do 0,01% mais rico foram verificadas em Amazonas (122% acima da inflação), Mato Grosso (115%) e Rondônia (106%). O estado em que a “elite” teve o pior desempenho foi o Ceará (20% em termos nominais ou -9% em valores reais), seguido por Pará (4%) e Rio de Janeiro (12%).
Refizemos as mesmas estimativas por unidade federada para o estrato constituído pelos 0,1% da população adulta com maiores rendas – o chamado “milésimo” mais rico (vide parte direita da tabela 1). Em média, a renda desse grupo cresceu 42% em valores reais, um pouco abaixo do 0,01%, conforme já tínhamos documentado, mas no Mato Grosso o crescimento real dos rendimentos dessa elite chegou a 117%, seguido por Mato Grosso do Sul (99%), Amazonas (84%) e Tocantins (78%).
O fato dessas taxas serem maiores nos estados em geral dominados pelo agronegócio (além de Amazonas) não é mera coincidência, uma vez que, conforme relatado na nota técnica anterior, verificou-se no período analisado (2017-2022) um crescimento extraordinariamente alto da renda da atividade rural, principalmente nos estratos mais ricos, em que esse tipo de rendimento (isento de tributação na sua maior parte) cresceu acima de 220% (ou 140% em termos reais).
Infelizmente, ainda não existem dados disponíveis da renda total das famílias por unidade federada que permitam, por meio de comparação com as informações do IRPF publicados pela Receita Federal, aferir a diferença de crescimento de renda entre a base e o topo da pirâmide em cada estado. Apesar disso, as altíssimas taxas de enriquecimento verificadas em vários estados do Norte e Centro-Oeste oferecem um indicativo de onde a desigualdade poderia estar crescendo mais. Inclusive porque a enorme diferença regional de performance dos mais ricos (MS e MT num extremo e CE e RJ no outro extremo) não deve se repetir na mesma magnitude entre os mais pobres e a classe média.
Ou seja, dado que a renda do cidadão comum provém principalmente de salários e benefícios sociais, que não apresentam tanta volatilidade e elasticidade-preço quanto os lucros da atividade empresarial (e rural), podemos esperar que os diferenciais de crescimento de renda na base da pirâmide não sejam tão pronunciados ao longo do território. Mas essa é uma hipótese a ser investigada e, se possível, materializada em estatísticas mais precisas sobre a desigualdade de renda na federação.
Por ora, enquanto não temos esses dados, podemos pelo menos aferir a desigualdade entre os declarantes do imposto de renda, que estão entre os 20% ou 25% mais ricos da população adulta. Para fazer isso, adotamos os seguintes recortes nos dados do IRPF: tomamos a renda média dos 38 mil declarantes mais ricos (o 0,1% mais rico no universo dos declarantes ou 0,025% mais rico da população adulta) e comparamos com a renda média das 3,8 milhões de pessoas que estão entre os centis 46 e 55 da distribuição dos declarantes.
Esse “miolo” da distribuição pode ser considerado uma espécie de representação da classe média e possui uma renda média mensal que, em 2022, variou de R$ 4,2 mil no Maranhão a R$ 7,7 mil no Distrito Federal, com uma média nacional de R$ 4,8 mil.
Os mais ricos, entre os declarantes, apresentaram uma renda média mensal que variou de R$ 300 mil no Amapá a R$ 1,6 milhão em São Paulo e Mato Grosso, praticamente empatados.
O gráfico abaixo ilustra a diferença entre a renda dessa elite e da classe média em cada unidade federada. Como se vê, os estados do Mato Grosso e São Paulo são aqueles com a maior desigualdade nesse indicador, seguidos por Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás.
Tais resultados são robustos a outros recortes e comparações entre os declarantes. Por exemplo, na comparação entre o 1% mais rico e o mesmo miolo da distribuição ou apenas o centil 50, Mato Grosso e São Paulo também lideram o ranking de desigualdade.
Fonte: elaboração própria pelo autor
Em resumo, as análises com base nos dados do IRPF oferecem fortes evidências de que a concentração de renda no topo cresceu significativamente no período recente, destoando do ocorrido na década anterior pelo menos, mas ao mesmo tempo indica que o crescimento da renda no topo apresenta fortes diferenças regionais, tendo sido mais pronunciado em estados cuja economia, em geral, é dominada pelo agronegócio.
E isso ocorreu num período em que a renda média do brasileiro apresentou uma das piores performances das últimas décadas, dada a estagnação do valor real dos salários e de outros indicadores.
[1] Por base da pirâmide nos referimos a todos adultos que estão do primeiro ao nonagésimo quinto centil da distribuição de renda; ou seja, todos os que não estão entre os 5% mais ricos. Em 2022, essa base é formada por todos adultos que tiveram renda líquida total inferior a R$ 10 mil mensais – por isso, estamos falando não apenas dos pobres, mas também da classe média.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Deixar Comentário