Concentração de renda no topo: novas revelações pelos dados do IRPF

Concentração de renda no topo: novas revelações pelos dados do IRPF

16/01/2024

Esta breve nota técnica tem por objetivo socializar alguns resultados preliminares das análises realizadas sobre os dados divulgados recentemente pela Receita Federal relativos às declarações do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF). As publicações recentes ampliam o detalhamento das rendas de várias naturezas declaradas entre 2017 e 2022, permitindo um diagnóstico mais acurado sobre a evolução e o nível da desigualdade no país.
 

Entre as evidências mais importantes desta análise, destaca-se no período recente o crescimento da renda dos muito ricos a um ritmo duas a três vezes maior do que a média registrada por 95% dos brasileiros. O que, ao que tudo indica, a confirmar-se por estudos complementares, elevou o nível de concentração de renda no topo da pirâmide para um novo recorde histórico, depois de uma década de relativa estabilidade da desigualdade.

 

Fonte: Estimativas próprias baseadas nos dados do IRPF/Receita Federal

 

A tabela acima, construída a partir de dados da Receita e do IBGE, compara a renda média em 2017 e 2022 de quatro estratos sociais: o milésimo (0,1%) mais rico, o 1% mais rico, os 5% mais ricos e os 95% restantes da população adulta (com 18 anos ou mais de idade). E o que se vê é que, além dos mais ricos terem, em média, maior crescimento de renda do que a base da pirâmide, a performance é tanto maior quanto maior é o nível de riqueza.
 

Ou seja, enquanto a maioria da população adulta teve um crescimento nominal médio de 33% em sua renda no período de cinco anos, marcado pela pandemia, a variação registrada pelos mais ricos foi de 51%, 67% e 87% nos estratos mais seletos. Entre os 15 mil milionários que compõe o 0,01% mais rico, o crescimento foi ainda maior: 96% (vide tabela 2 adiante).
 

Como resultado disso, a proporção do bolo apropriada pelos 1% mais rico da sociedade brasileira cresceu de 20,4% para 23,7%% entre 2017 e 2022, mas mais de quatro quintos dessa concentração adicional de renda foi absorvida pelo milésimo mais rico, constituído por 153 mil adultos com renda média mensal de R$ 441 mil em 2022.[1]
 

Note-se que, no caso dos estratos mais ricos, os valores médios de renda foram  calculados diretamente dos arquivos fornecidos pela RFB, sem necessidade de qualquer metodologia de interpolação para fracionar a renda dos centis da distribuição. Isso foi possível porque, por coincidência, a evolução do número declarantes entre 2017 e 2022 nos permitiu identificar grupos muito representativos dos estratos de 0,1%, 1% e 5% mais ricos em proporção da população adulta, retroprojetada com base na taxa média de crescimento populacional entre os dois últimos censos (2010 e 2022).
 

Por exemplo, as 1,53 milhões de pessoas que estão entre os 4% mais ricos no universo de declarantes do IRPF em 2022 representam 0,996% da população adulta. E o grupo de comparação em 2017 é constituído por 1,52 milhões de pessoas, que integram os 5% mais ricos entre os declarantes, e representam 1,017% da população adulta daquele ano.[2]
 

Uma vez que os dois grupos de declarantes tem praticamente a mesma representatividade sobre a população adulta, optamos por não recorrer a metodologias de interpolação, o que não impede que novos estudos (com esse tipo de técnica) sejam realizados agora a fim de refinar as estimativas históricas.
 

Entre os agregados de renda padronizados pela Receita Federal, utilizamos como base para os cálculos a renda total declarada menos os valores de transferências patrimoniais por doação e herança – o que equivale ao agregado denominado RB4 das tabulações.
 

Por outro lado, a renda dos 95% mais pobres da população adulta foi obtida por resíduo, subtraindo a renda dos 5% mais ricos do valor da renda disponível total das famílias brasileiras, que consta das contas nacionais do IBGE. Como essa renda é líquida de tributos diretos e contribuições sociais, também procedemos tais deduções sobre a renda bruta dos declarantes do IRPF.
 

Na tabela 2, segregamos a renda dos estratos mais ricos por tipo de rendimento, separando aqueles provenientes do trabalho e do capital. Ao assim proceder-se, verificamos que a melhor performance da renda dos mais ricos se explica sobretudo pelo aumento de lucros e dividendos distribuídos, hoje isentos de tributação, e por um segundo componente que pouca atenção tem despertado nas análises: a renda da atividade rural, cuja maior parcela também está isenta de tributação.
 

Em 2022, por exemplo, dos R$ 147 bilhões de renda proveniente da atividade rural, mais de dois terços foi isenta de tributação (R$ 101 bilhões) e nada menos do que 42% desse montante foi parar no bolso do milésimo mais rico da população. Índice de concentração muito parecido ao registrado por lucros e dividendos (44%).

 

Note-se que estamos tratando do milésimo mais rico, o 0,1% mais rico. No Brasil, para estar nesse estrato, é necessário ter uma renda de pelo menos R$ 140 mil mensais. Já para pertencer ao 1% mais rico, basta ter renda superior a R$ 30 mil. E a porta de entrada para os 5% mais ricos são os R$ 10 mil mensais, o que inclui na prática grande parte da nossa classe média.
 

Mais importante, porém, do que ajudar a definir quem é ou não rico (e em relação a quem), os resultados da análise com base nos dados do IRPF servem de alerta sobre o processo de reconcentração de renda no Brasil e sobre os vetores que mais contribuem para isso – os rendimentos isentos ou subtributados que se destacam como fonte de remuneração principal entre os super ricos.
 

Em resumo, ainda é cedo para avaliar se o aumento da concentração de renda no topo é fenômeno estrutural ou conjuntural, mas as evidências reunidas  reforçam a necessidade de revisão das isenções tributárias atualmente concedidas pela legislação e que beneficiam especialmente os mais ricos.

 

Baixe aqui o arquivo com os dados em Excel.


[1] O índice de concentracão referido nesta nota tem como denominador a renda nacional disponível das famílias, calculada pelo IBGE até 2021 e estimada para 2022 com base na variação do consume das famílias. Esse índice não é comparável com o apurado por estudos anteriores que tenham utilizado estimativas diferentes (e mais altas) de população adulta, antes da realização do censo de 2022.

[2] A população adulta de 2022 corresponde àquela apurada pelo censo, enquanto a de 2017 foi retroprojetada de duas formas distintas: pela taxa média de crescimento entre os censos (145 milhões) e por interpolação cúbica (153 milhões), em cuja caso a série apresenta decréscimo nos anos recentes. Dadas as incertezas sobre as estimativas demográficas, adotamos uma média entre os dois resultados: 149 milhões, mas os resultados são robustos às diferentes hipóteses.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Domingos Sávio ...
Muito importante o seu trabalho no geral, lançando luzes sobre a questão da concentração de renda no país e a necessidade de rever as isenções fiscais, para ajudar a inverter o curso dessa concentração de renda. Eu trabalho em Mato Grosso, na UNEMAT, onde sou professor e me interessou particularmente a passagem seguinte de seu artigo. "Na tabela 2, segregamos a renda dos estratos mais ricos por tipo de rendimento, separando aqueles provenientes do trabalho e do capital. Ao assim proceder-se, verificamos que a melhor performance da renda dos mais ricos se explica sobretudo pelo aumento de lucros e dividendos distribuídos, hoje isentos de tributação, e por um segundo componente que pouca atenção tem despertado nas análises: a renda da atividade rural, cuja maior parcela também está isenta de tributação." Aqui em Mato Grosso a atividade rural é coberta com uma imensa isenção fiscal, que não para de aumentar a cada ano, ou melhor, a cada orçamento do Estado. O resultado é que o crescimento do PIB do estado, acima de outros do país (alardeado pelo governo do Estado), não resulta em redução das desigualdades sociais e regionais, que, ao contrário, estão aumentando ano a ano, com reflexos particularmente na prestação de serviços públicos para atender a maioria da população. Parabéns.
Juliana
É possível desagregar as tabelas por macrorregiões e unidades federativas?
Norma Valencio
Prezado Sérgio: Apreciei muito suas análises preliminares. Parabéns pelo estudo. att, Norma
PAULO JOSÉ VILL...
Excelente trabalho! Oportuno e muito útil

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